Em 2017, foram mais de
600 casos de violência
doméstica por dia no Brasil, com mais de 4,5 mil mortes
Não é fácil
ser mulher no Brasil. Além da dupla (as vezes tripla) jornada de trabalho, do salário
menor, da discriminação, da paquera deselegante que cai na importunação sexual,
das piadas sexistas, as nossas mulheres estão morrendo simplesmente pelo fato
de serem mulheres. É um tipo de crime caracterizado como feminicídio,
geralmente praticado por alguém próximo: marido, ex-marido, namorado,
companheiro, amante, um familiar.
A grande
pergunta é: por que se mata tanta mulher no Brasil hoje? E aí entra outra
questão: O que há de errado com a nossa sociedade atualmente? E mais outra
pergunta surge: será que hoje se mata mais do que no passado ou estes casos são
mais denunciados do que antes? Que espécie pode ter futuro se mata a si
própria: se não mata a mulher (mãe), mata a prole (os filhos), comprometendo
seu próprio futuro.
Os números da
violência no Brasil, sobretudo a violência contra a mulher, assustam e jogam
por terra a imagem de país pacato e tranquilo. O que há de errado com o nosso
país? Em 2017, batemos um triste recorde, com mais de 63 mil assassinatos. São
números comparáveis aos de países em guerra. Só para se ter uma ideia, na
Guerra da Síria, entre 2011 e 2017, mais de 330 mil pessoas morreram, o que dá
cerca de 55 mil por ano, bem menos do que foi registado no Brasil em um único
ano.
A situação é
alarmante. Especialistas lembram que por trás dos números estão vidas
destruídas. Há muita informação na internet sobre o tema e. embora possa haver
pequenas diferenças entre os números apresentados por diversas fontes (até
porque muitos casos não são denunciados), o certo é que a violência vem
aumentando no país e as mulheres estão entre as principais vítimas. Até a
conceituada Human Rights Watch (Observatório
dos Direitos Humanos, em uma tradução livre), afirmou em relatório divulgado no
começo deste ano que a violência doméstica é “uma epidemia” no Brasil. Segundo
a organização, há mais de 1 milhão de casos de agressões contra as mulheres
pendentes na justiça brasileira. A HRW, porém, aponta a Lei Maria da Penha como
um importante instrumento no avanço do combate a esta situação de violência.
A violência em
números
O 12º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública divulgado em agosto de 2018 mostra que em 2017 o Brasil teve
221.238 registros de violência doméstica, o que significa 606 casos por dia.
São registros de lesão corporal dolosa enquadrados na Lei Maria da Penha. É a
primeira vez que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública tabula esses dados. De
acordo com o anuário, o país registrou 63,8 mil assassinatos em 2017, um triste
recorde, como já dissemos.
Os números de violência contra a
mulher devem ser ainda maiores, já que Distrito Federal, Espírito Santo,
Tocantins, Mato Grosso e Roraima não informaram os dados. As piores taxas estão
em Santa Catarina, com 225,9 casos a cada 100 mil habitantes, seguida por Mato
Grosso do Sul (207,6) e Rondônia (204,9). O fórum também contabilizou o número
de mulheres vítimas de homicídio no ano de 2017: 4.539 (aumento de 6,1% em
relação a 2016). Desse total, 1.133 foram vítimas de feminicídio.
Plataforma
A plataforma
digital Violência contra as Mulheres em Dados reúne pesquisas e dados
recentes relacionados às violências contra as mulheres no Brasil, com base no
monitoramento e curadoria realizados pelo Instituto Patrícia Galvão – com foco
na violência doméstica, sexual e online, no feminicídio e na intersecção
com o racismo e a LGBTTfobia. Na plataforma estão reunidos os destaques de cada
estudo e sínteses produzidas pela equipe do Instituto a partir da consulta a
documentos de referência e entrevistas com especialistas, que ajudam a contextualizar
os dados apresentados.
Com apoio do Instituto Avon, a
plataforma tem o objetivo de estimular e subsidiar a divulgação de informações
e o debate sobre questões críticas em relação à violência contra as mulheres no
Brasil – seja por jornalistas, comunicadores, ativistas, gestores,
profissionais que trabalham com o tema, estudantes e interessados em geral. A
ideia é que os materiais da plataforma possam ser usados e compartilhados no
debate público para promover uma ampla reflexão não apenas sobre os índices de
violência de gênero, mas como transformá-los, e alertar que por trás das
estatísticas alarmantes há vidas e trajetórias violadas pela naturalização e
perpetuação da violência. Dados confiáveis e fontes diversas e qualificadas são
essenciais para dimensionar o problema, contextualizar o debate e pautar as
transformações culturais e políticas públicas necessárias para reverter o grave
quadro da violência de gênero.
Segundo esta
plataforma, que utiliza os dados do Atlas da Violência 2018, o Brasil registra
o triste número de 13 mortes violentas de mulheres por dia. Em 2016, 4.645
mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5
homicídios para cada 100 mil brasileiras, um aumento de 6,4% no período de
dez anos. No Estado de São Paulo, por exemplo, o registro de estupros aumentou
10,3% em 2017.
No país como um todo, o
crescimento foi de 8,4%, pulando de 54,9 mil para pouco mais de 60 mil casos
registrados. Não é fácil mesmo ser mulher no Brasil, pois a cada dia três
mulheres são assassinadas pelo simples fato de serem mulheres, crime conhecido
como feminicídio; a cada dois minutos, uma mulher registra uma agressão com
base na lei Maria da Penha. Ainda segundo a Plataforma de Dados, uma pessoa
trans ou gênero-diversas é assassinada a cada dois dias.
Mulher no mercado de
trabalho
Nem tudo é violência ou tristeza.
A participação da mulher no mercado de trabalho nacional tem ganhado destaque
principalmente nos últimos anos. Em 2007 a presença feminina representava 40,8%
do mercado formal. Já em 2016, esse número subiu para 44%. Os dados são do
Ministério do Trabalho e são baseados em pesquisas do Cadastro Geral de Emprego
e Desemprego (Caged) e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).
Apesar desse crescimento, uma
parte das mulheres ainda tem que passar por dificuldades que muitos homens não
encontram, tais como o equilíbrio entre atividades domésticas versus o emprego
fora de casa e a diferença salarial. Mesmo com desafios maiores, grande parte
das mulheres batalha diariamente para manter ou até mesmo criar seu espaço nas
empresas.
Elas têm a palavra
O Marconews perguntou para diversas
mulheres como elas avaliam a situação feminina no Brasil hoje, se já foram
discriminadas por serem mulheres e o que pode ser feito para mudar essa
situação. Veja agora as respostas.
Olhares desconfiados
|
Andrea Vaz |
“Por diversas
vezes vi homens ficarem parados me vendo estacionar meu carro. Acho bobo da
parte deles. Mas não me abalo porque não preciso provar nada para ninguém”. A
frase é da jornalista Andrea Vaz dos Santos, de 33 anos.
Para ela, “no
Brasil parece que temos mais liberdade, apesar do mundo estar mais perigoso. Sabemos
que a cultura de muitos países é diferente do nosso”, diz a jornalista sobre a
situação da mulher no mundo hoje.
Sobre
machismo na sociedade e a maneira como os filhos são educados, Andrea diz
acreditar que “a geração que virá será diferente da que eu fui criada. Porém,
em algumas situações há um exagero ao se referir a machismo. Por exemplo, li sobre
uma mulher dizendo que é machismo um homem querer furar a orelha de sua bebê”.
Ela também
observa que “aqui no Brasil, civilmente temos os mesmos direitos. Quanto à
diferença salarial que acontece em alguns meios, creio que falte uma
valorização verdadeira das qualidades da mulher. Mas, muitas vezes, devido ao
feminismo às avessas, as mulheres querem mostrar o pior de si, tentando se
igualar aos homens, ao invés de valorizar sua essência feminina.
Vejo as mulheres sobrecarregadas com suas ocupações.
Trabalhar, estudar, cuidar da família, se cuidar, tudo isso é um grande peso.
Por mais que o companheiro ajude no que pode, algumas coisas são essencialmente
femininas e acaba sendo pesado. Creio que para mudar, os homens têm de ser
educados para valorizar e respeitar as mulheres, mesmo em suas limitações e as
mulheres também devem se valorizar e respeitar, dando voz à sua essência
feminina e não querer se igualar ao homem, porque homem e mulher são
essencialmente diferentes”.
Entre os
pontos positivos na sociedade moderna com relação à mulher, Andrea aponta que
“cada vez mais ela vem encontrando seu espaço, tendo autonomia e apoio, apesar
de muita ainda precisar ser feito”.
Mudanças são fruto de
trabalho
Para a
administradora de empresas Sandra Regina Bertelli (foto), de 59 anos, não há dúvida de
que as mulheres hoje têm mais liberdade do que há 30 anos. “Porém, todas as
conquistas que fizemos e fazemos foram através de um árduo trabalho de mudança
de valores, através dos tempos, tanto para os homens, como para as mulheres”.
Apesar das
conquistas, ela também já se sentiu discriminada. “Sim, muitas vezes, e ainda
acontecem situações de discriminação por eu ser mulher, mas com a maturidade
aprendi a superar com atitudes positivas, mostrando para o outro o quanto ele
está errado. Às vezes funciona, outras não”.
Sobre o
machismo na sociedade e a educação dos filhos, Sandra diz que “nos dias atuais,
não são somente as mulheres que educam os filhos, a participação dos pais está
cada vez maior. Em outros tempos, sim, a educação ficava à cargo das mulheres,
mas acredito muito em educar por exemplos, e os filhos viam muito o exemplo
machista dos pais, portanto, tornando-se pessoas machistas, também. As mulheres,
por sua vez, eram submissas em sua maioria e permitiam essas atitudes em suas
vidas”. Para que homens e mulheres tenham direitos iguais, Sandra Bertelli
afirma que “a conscientização das mulheres é o passo mais importante. Somos nós
que temos que mudar, para que tudo e todos mudem ao nosso redor. Quando
assumimos nossas vidas, como pessoas independentes e competentes, que somos,
tudo pode mudar. Mas sei que não é um caminho fácil. Na minha opinião, o maior problema
é se encontrar em relacionamentos machistas, onde o homem tem a pretensão de
achar que são seus donos e que mandam em suas vidas. Elas têm que fazer o que
eles querem e assim, se anulam por completo. A mudança vem com a
conscientização de que são pessoas inteiras e íntegras, que não precisam se
submeter a esse tipo de relacionamento tóxico, que podem encontrar outros
homens e serem felizes”, finalizando, a administradora ressalta que “há muito
pontos positivos na sociedade atual. Um dos mais importantes, é a divulgação de
assédios e agressões, quando você vê que outra mulher passa pelo mesmo que
você, consegue se ver como vítima de uma situação e ter forças para mudar”.
Conquistando espaço
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Arlete Neves |
Para a autônoma Arlete Santos Neves, 59 anos, “com
certeza a mulher conseguiu seu espaço na sociedade, e cada dia vemos mais
mulheres se igualarem nas profissões que antes eram só para homens “.
A própria
Arlete é um exemplo de superação e da força da mulher. Mãe, avó, bisavô, comerciante,
nadadora medalhista, artesã, alfabetizada, motorista independente. Sua vida
daria um livro. E ela já confidenciou que desejar escrevê-lo. “Sofri durante
toda minha vida muito assédio por parte dos homens. Ainda quando criança
algumas situações desagradáveis. No trem, no ônibus, e até no trabalho, mas
sempre fui muito malcriada e valente. De certa forma esse meu jeito me protegeu
e me protege até os dias de hoje”.
Discriminação
“No meu ponto de vista a discriminação
existe entre homens e mulheres. Muitos homens acham que as mulheres não podem
fazer certas coisas; que é só pra homens, mas a mulher também discrimina o
homem que, por livre escolha, goste de dançar, cozinhar, fazer crochê, ou ser
cabeleireiro de mulheres, que às vezes lavam louças e roupas, cuidam das
crianças. Isso tudo é fato. Temos o livre arbítrio, direitos e deveres. Isso
cabe a qualquer ser humano independente do sexo, raça ou qualquer coisa, só
temos que aprender a respeitar as escolhas de cada um e aceitar as pessoas como
elas são”
Para Arlete “o maior problema
ainda é a violência contra as mulheres, a polícia não a protege, a lei é branda
e falha; elas sofrem ameaças, fazem a denúncia e nada acontece, só depois que o
pior acontece é que as providências são tomadas, acho que as leis deveriam ser
mais duras para que o simples agressor na primeira prática já ir dormir atrás
das grades, e o governo dar assistência a mulher e filhos”.
Mesmo com as dificuldades, a
artesã reconhece que “as mulheres conquistaram espaço em todos os pontos da
sociedade, motorista de ônibus, piloto de avião, delegada, mecânico de autos, etc...Eu
mesma fiz curso de formação de segurança, com 43 homens: eu era a única mulher
no curso de 20 dias, participei de todos os treinamentos e fui aprovada com
sucesso. Hoje a mulher é casada, tem seus filhos, trabalha fora, estuda, e às
vezes ganham mais que seus maridos, dirigem e são independentes “.
Violência
silenciosa
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O que faz um grande homem é o seu caráter |
Além da violência física,
existe uma outra forma de agressão às mulheres; uma ação silenciosa e
progressiva, mas que também pode causar muitos danos à pessoa, conforme explica
a psicóloga Regina Soares Mendes de Souza, de 60 anos.
“A violência psicológica
ocorre silenciosamente, aos poucos e progressivamente. Manifesta-se quando
ocorre o impedimento de pequenas decisões no cotidiano. Em nome da proteção e
do ciúme desqualifica a capacidade de escolha desta mulher. Fere sua autoestima
fazendo comparações com outras mulheres, sempre ressaltando qualidades nas
outras. Castra-lhe os sonhos! A forma de combatê-la é estabelecer uma relação
linear e não vertical. É fundamental o respeito pela individualidade um do
outro”.
Para a psicóloga, “a situação
da mulher no mundo no tocante à liberdade de expressão e de escolha, autonomia,
depende da cultura onde está inserida. Muitas mulheres ainda são perseguidas
pelo simples fato de desejarem o respeito, a igualdade de direitos e
individualidade. Muitas ainda são reféns de ideologias e crenças hegemônicas”.
Ela mesma já passou por
momentos difíceis: “já vivi uma situação bastante constrangedora na vida
profissional quando acharam que, por ser mulher, aparentemente frágil e
ingênua, poderiam usar o jogo do poder para me convencer a ter atitudes que
contrariavam meus valores e minha ética profissional. Minha atitude foi de
enfrentamento, mantendo minha dignidade e auto respeito”.
Regina Soares afirma
ainda que “a educação dos filhos atualmente envolve a mãe e o pai, estando eles
vivendo sob o mesmo teto ou não. O que é bastante comum é reproduzirmos na
educação dos filhos a mesma forma de como fomos educados por nossos familiares.
Bem além do que falamos, nossas atitudes representam maior influência na
educação dos filhos. Tanto a mãe como o pai podem ser modelos que pregam a desigualdade
de gêneros, o desrespeito e a desqualificação do feminino. É preciso educar
para a autonomia e não para a submissão”.
Conforme a psicóloga, para
que homens e mulheres tenham os mesmos direitos é necessário que todos “se
apropriem e se empoderem desses direitos enquanto seres sociais, sem prejuízo a
individualidade de cada um. Devem estar atentos a não permanecerem em relações
abusivas e desrespeitosas que ameacem sua autonomia. Homens e mulheres devem
estar cientes de suas responsabilidades, sendo parceiros e não concorrentes na
busca da preservação dos direitos de cada um”.
“Ainda temos uma cultura
que banaliza e desqualifica a mulher. Em nome da liberdade de expressão muitas
ficam expostas como mercadorias tornando-se simples objetos de satisfação para
o outro. A ditadura da beleza estética, a busca de corpos perfeitos tem levado
muitas adolescentes e mulheres a desenvolverem baixa autoestima e transtornos
de ordem psicológica”, afirma Regina.
Para ela, “a sociedade
machista desenvolveu no homem o sentimento de posse com relação à mulher. Isto
gerou a coisificação da mulher. Muitas sofreram e sofrem com o descaso de seus
companheiros. A não aceitação de outros homens da rejeição, no caso do término
do relacionamento, levam alguns a sentirem-se no direito de tirar a vida de
suas ex-companheiras. Com a Lei Maria da Penha algumas mulheres quebram o
silêncio e denunciam a violência doméstica na esperança de colocarem um fim no
sofrimento, muitas vezes vivido de forma solitária. A violência cresceu muito
nas últimas décadas e as mulheres fazem parte desta estatística”.
Apesar de tudo, a
psicóloga cita como pontos positivos na sociedade atual a “maior participação
social (da mulher), acesso às mais variadas profissões, maior respeito de seus
pares e do universo masculino e a busca por maior capacitação para inserção no
mercado de trabalho”.
Texto: Marco Antonio Vieira de Moraes