sexta-feira, 8 de março de 2019

O país que odeia suas mulheres

Em 2017, foram mais de 600 casos de violência 
doméstica por dia no Brasil, com mais de 4,5 mil mortes



          Não é fácil ser mulher no Brasil. Além da dupla (as vezes tripla) jornada de trabalho, do salário menor, da discriminação, da paquera deselegante que cai na importunação sexual, das piadas sexistas, as nossas mulheres estão morrendo simplesmente pelo fato de serem mulheres. É um tipo de crime caracterizado como feminicídio, geralmente praticado por alguém próximo: marido, ex-marido, namorado, companheiro, amante, um familiar.
          A grande pergunta é: por que se mata tanta mulher no Brasil hoje? E aí entra outra questão: O que há de errado com a nossa sociedade atualmente? E mais outra pergunta surge: será que hoje se mata mais do que no passado ou estes casos são mais denunciados do que antes? Que espécie pode ter futuro se mata a si própria: se não mata a mulher (mãe), mata a prole (os filhos), comprometendo seu próprio futuro.
          Os números da violência no Brasil, sobretudo a violência contra a mulher, assustam e jogam por terra a imagem de país pacato e tranquilo. O que há de errado com o nosso país? Em 2017, batemos um triste recorde, com mais de 63 mil assassinatos. São números comparáveis aos de países em guerra. Só para se ter uma ideia, na Guerra da Síria, entre 2011 e 2017, mais de 330 mil pessoas morreram, o que dá cerca de 55 mil por ano, bem menos do que foi registado no Brasil em um único ano.
          A situação é alarmante. Especialistas lembram que por trás dos números estão vidas destruídas. Há muita informação na internet sobre o tema e. embora possa haver pequenas diferenças entre os números apresentados por diversas fontes (até porque muitos casos não são denunciados), o certo é que a violência vem aumentando no país e as mulheres estão entre as principais vítimas. Até a conceituada Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos, em uma tradução livre), afirmou em relatório divulgado no começo deste ano que a violência doméstica é “uma epidemia” no Brasil. Segundo a organização, há mais de 1 milhão de casos de agressões contra as mulheres pendentes na justiça brasileira. A HRW, porém, aponta a Lei Maria da Penha como um importante instrumento no avanço do combate a esta situação de violência.

A violência em números
O 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado em agosto de 2018 mostra que em 2017 o Brasil teve 221.238 registros de violência doméstica, o que significa 606 casos por dia. São registros de lesão corporal dolosa enquadrados na Lei Maria da Penha. É a primeira vez que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública tabula esses dados. De acordo com o anuário, o país registrou 63,8 mil assassinatos em 2017, um triste recorde, como já dissemos.
Os números de violência contra a mulher devem ser ainda maiores, já que Distrito Federal, Espírito Santo, Tocantins, Mato Grosso e Roraima não informaram os dados. As piores taxas estão em Santa Catarina, com 225,9 casos a cada 100 mil habitantes, seguida por Mato Grosso do Sul (207,6) e Rondônia (204,9). O fórum também contabilizou o número de mulheres vítimas de homicídio no ano de 2017: 4.539 (aumento de 6,1% em relação a 2016). Desse total, 1.133 foram vítimas de feminicídio.

Plataforma
A plataforma digital Violência contra as Mulheres em Dados reúne pesquisas e dados recentes relacionados às violências contra as mulheres no Brasil, com base no monitoramento e curadoria realizados pelo Instituto Patrícia Galvão – com foco na violência doméstica, sexual e online, no feminicídio e na intersecção com o racismo e a LGBTTfobia. Na plataforma estão reunidos os destaques de cada estudo e sínteses produzidas pela equipe do Instituto a partir da consulta a documentos de referência e entrevistas com especialistas, que ajudam a contextualizar os dados apresentados.
Com apoio do Instituto Avon, a plataforma tem o objetivo de estimular e subsidiar a divulgação de informações e o debate sobre questões críticas em relação à violência contra as mulheres no Brasil – seja por jornalistas, comunicadores, ativistas, gestores, profissionais que trabalham com o tema, estudantes e interessados em geral. A ideia é que os materiais da plataforma possam ser usados e compartilhados no debate público para promover uma ampla reflexão não apenas sobre os índices de violência de gênero, mas como transformá-los, e alertar que por trás das estatísticas alarmantes há vidas e trajetórias violadas pela naturalização e perpetuação da violência. Dados confiáveis e fontes diversas e qualificadas são essenciais para dimensionar o problema, contextualizar o debate e pautar as transformações culturais e políticas públicas necessárias para reverter o grave quadro da violência de gênero.
          Segundo esta plataforma, que utiliza os dados do Atlas da Violência 2018, o Brasil registra o triste número de 13 mortes violentas de mulheres por dia. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras, um aumento de 6,4% no período de dez anos. No Estado de São Paulo, por exemplo, o registro de estupros aumentou 10,3% em 2017.
No país como um todo, o crescimento foi de 8,4%, pulando de 54,9 mil para pouco mais de 60 mil casos registrados. Não é fácil mesmo ser mulher no Brasil, pois a cada dia três mulheres são assassinadas pelo simples fato de serem mulheres, crime conhecido como feminicídio; a cada dois minutos, uma mulher registra uma agressão com base na lei Maria da Penha. Ainda segundo a Plataforma de Dados, uma pessoa trans ou gênero-diversas é assassinada a cada dois dias.

Mulher no mercado de trabalho
Nem tudo é violência ou tristeza. A participação da mulher no mercado de trabalho nacional tem ganhado destaque principalmente nos últimos anos. Em 2007 a presença feminina representava 40,8% do mercado formal. Já em 2016, esse número subiu para 44%. Os dados são do Ministério do Trabalho e são baseados em pesquisas do Cadastro Geral de Emprego e Desemprego (Caged) e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).
Apesar desse crescimento, uma parte das mulheres ainda tem que passar por dificuldades que muitos homens não encontram, tais como o equilíbrio entre atividades domésticas versus o emprego fora de casa e a diferença salarial. Mesmo com desafios maiores, grande parte das mulheres batalha diariamente para manter ou até mesmo criar seu espaço nas empresas.

Elas têm a palavra
          O Marconews perguntou para diversas mulheres como elas avaliam a situação feminina no Brasil hoje, se já foram discriminadas por serem mulheres e o que pode ser feito para mudar essa situação. Veja agora as respostas.

Olhares desconfiados
Andrea Vaz

          “Por diversas vezes vi homens ficarem parados me vendo estacionar meu carro. Acho bobo da parte deles. Mas não me abalo porque não preciso provar nada para ninguém”. A frase é da jornalista Andrea Vaz dos Santos, de 33 anos.
          Para ela, “no Brasil parece que temos mais liberdade, apesar do mundo estar mais perigoso. Sabemos que a cultura de muitos países é diferente do nosso”, diz a jornalista sobre a situação da mulher no mundo hoje.
          Sobre machismo na sociedade e a maneira como os filhos são educados, Andrea diz acreditar que “a geração que virá será diferente da que eu fui criada. Porém, em algumas situações há um exagero ao se referir a machismo. Por exemplo, li sobre uma mulher dizendo que é machismo um homem querer furar a orelha de sua bebê”.
          Ela também observa que “aqui no Brasil, civilmente temos os mesmos direitos. Quanto à diferença salarial que acontece em alguns meios, creio que falte uma valorização verdadeira das qualidades da mulher. Mas, muitas vezes, devido ao feminismo às avessas, as mulheres querem mostrar o pior de si, tentando se igualar aos homens, ao invés de valorizar sua essência feminina.
Vejo as mulheres sobrecarregadas com suas ocupações. Trabalhar, estudar, cuidar da família, se cuidar, tudo isso é um grande peso. Por mais que o companheiro ajude no que pode, algumas coisas são essencialmente femininas e acaba sendo pesado. Creio que para mudar, os homens têm de ser educados para valorizar e respeitar as mulheres, mesmo em suas limitações e as mulheres também devem se valorizar e respeitar, dando voz à sua essência feminina e não querer se igualar ao homem, porque homem e mulher são essencialmente diferentes”.
          Entre os pontos positivos na sociedade moderna com relação à mulher, Andrea aponta que “cada vez mais ela vem encontrando seu espaço, tendo autonomia e apoio, apesar de muita ainda precisar ser feito”.

Mudanças são fruto de trabalho

          Para a administradora de empresas Sandra Regina Bertelli (foto), de 59 anos, não há dúvida de que as mulheres hoje têm mais liberdade do que há 30 anos. “Porém, todas as conquistas que fizemos e fazemos foram através de um árduo trabalho de mudança de valores, através dos tempos, tanto para os homens, como para as mulheres”.
          Apesar das conquistas, ela também já se sentiu discriminada. “Sim, muitas vezes, e ainda acontecem situações de discriminação por eu ser mulher, mas com a maturidade aprendi a superar com atitudes positivas, mostrando para o outro o quanto ele está errado. Às vezes funciona, outras não”.
          Sobre o machismo na sociedade e a educação dos filhos, Sandra diz que “nos dias atuais, não são somente as mulheres que educam os filhos, a participação dos pais está cada vez maior. Em outros tempos, sim, a educação ficava à cargo das mulheres, mas acredito muito em educar por exemplos, e os filhos viam muito o exemplo machista dos pais, portanto, tornando-se pessoas machistas, também. As mulheres, por sua vez, eram submissas em sua maioria e permitiam essas atitudes em suas vidas”. Para que homens e mulheres tenham direitos iguais, Sandra Bertelli afirma que “a conscientização das mulheres é o passo mais importante. Somos nós que temos que mudar, para que tudo e todos mudem ao nosso redor. Quando assumimos nossas vidas, como pessoas independentes e competentes, que somos, tudo pode mudar. Mas sei que não é um caminho fácil. Na minha opinião, o maior problema é se encontrar em relacionamentos machistas, onde o homem tem a pretensão de achar que são seus donos e que mandam em suas vidas. Elas têm que fazer o que eles querem e assim, se anulam por completo. A mudança vem com a conscientização de que são pessoas inteiras e íntegras, que não precisam se submeter a esse tipo de relacionamento tóxico, que podem encontrar outros homens e serem felizes”, finalizando, a administradora ressalta que “há muito pontos positivos na sociedade atual. Um dos mais importantes, é a divulgação de assédios e agressões, quando você vê que outra mulher passa pelo mesmo que você, consegue se ver como vítima de uma situação e ter forças para mudar”.

Conquistando espaço
Arlete Neves

           Para a autônoma Arlete Santos Neves, 59 anos, “com certeza a mulher conseguiu seu espaço na sociedade, e cada dia vemos mais mulheres se igualarem nas profissões que antes eram só para homens “.
          A própria Arlete é um exemplo de superação e da força da mulher. Mãe, avó, bisavô, comerciante, nadadora medalhista, artesã, alfabetizada, motorista independente. Sua vida daria um livro. E ela já confidenciou que desejar escrevê-lo. “Sofri durante toda minha vida muito assédio por parte dos homens. Ainda quando criança algumas situações desagradáveis. No trem, no ônibus, e até no trabalho, mas sempre fui muito malcriada e valente. De certa forma esse meu jeito me protegeu e me protege até os dias de hoje”.

Discriminação
“No meu ponto de vista a discriminação existe entre homens e mulheres. Muitos homens acham que as mulheres não podem fazer certas coisas; que é só pra homens, mas a mulher também discrimina o homem que, por livre escolha, goste de dançar, cozinhar, fazer crochê, ou ser cabeleireiro de mulheres, que às vezes lavam louças e roupas, cuidam das crianças. Isso tudo é fato. Temos o livre arbítrio, direitos e deveres. Isso cabe a qualquer ser humano independente do sexo, raça ou qualquer coisa, só temos que aprender a respeitar as escolhas de cada um e aceitar as pessoas como elas são”
Para Arlete “o maior problema ainda é a violência contra as mulheres, a polícia não a protege, a lei é branda e falha; elas sofrem ameaças, fazem a denúncia e nada acontece, só depois que o pior acontece é que as providências são tomadas, acho que as leis deveriam ser mais duras para que o simples agressor na primeira prática já ir dormir atrás das grades, e o governo dar assistência a mulher e filhos”.
Mesmo com as dificuldades, a artesã reconhece que “as mulheres conquistaram espaço em todos os pontos da sociedade, motorista de ônibus, piloto de avião, delegada, mecânico de autos, etc...Eu mesma fiz curso de formação de segurança, com 43 homens: eu era a única mulher no curso de 20 dias, participei de todos os treinamentos e fui aprovada com sucesso. Hoje a mulher é casada, tem seus filhos, trabalha fora, estuda, e às vezes ganham mais que seus maridos, dirigem e são independentes “.


Violência silenciosa
O que faz um grande homem é o seu caráter

          Além da violência física, existe uma outra forma de agressão às mulheres; uma ação silenciosa e progressiva, mas que também pode causar muitos danos à pessoa, conforme explica a psicóloga Regina Soares Mendes de Souza, de 60 anos.
          “A violência psicológica ocorre silenciosamente, aos poucos e progressivamente. Manifesta-se quando ocorre o impedimento de pequenas decisões no cotidiano. Em nome da proteção e do ciúme desqualifica a capacidade de escolha desta mulher. Fere sua autoestima fazendo comparações com outras mulheres, sempre ressaltando qualidades nas outras. Castra-lhe os sonhos! A forma de combatê-la é estabelecer uma relação linear e não vertical. É fundamental o respeito pela individualidade um do outro”.
          Para a psicóloga, “a situação da mulher no mundo no tocante à liberdade de expressão e de escolha, autonomia, depende da cultura onde está inserida. Muitas mulheres ainda são perseguidas pelo simples fato de desejarem o respeito, a igualdade de direitos e individualidade. Muitas ainda são reféns de ideologias e crenças hegemônicas”.
          Ela mesma já passou por momentos difíceis: “já vivi uma situação bastante constrangedora na vida profissional quando acharam que, por ser mulher, aparentemente frágil e ingênua, poderiam usar o jogo do poder para me convencer a ter atitudes que contrariavam meus valores e minha ética profissional. Minha atitude foi de enfrentamento, mantendo minha dignidade e auto respeito”.
          Regina Soares afirma ainda que “a educação dos filhos atualmente envolve a mãe e o pai, estando eles vivendo sob o mesmo teto ou não. O que é bastante comum é reproduzirmos na educação dos filhos a mesma forma de como fomos educados por nossos familiares. Bem além do que falamos, nossas atitudes representam maior influência na educação dos filhos. Tanto a mãe como o pai podem ser modelos que pregam a desigualdade de gêneros, o desrespeito e a desqualificação do feminino. É preciso educar para a autonomia e não para a submissão”.
          Conforme a psicóloga, para que homens e mulheres tenham os mesmos direitos é necessário que todos “se apropriem e se empoderem desses direitos enquanto seres sociais, sem prejuízo a individualidade de cada um. Devem estar atentos a não permanecerem em relações abusivas e desrespeitosas que ameacem sua autonomia. Homens e mulheres devem estar cientes de suas responsabilidades, sendo parceiros e não concorrentes na busca da preservação dos direitos de cada um”.
          “Ainda temos uma cultura que banaliza e desqualifica a mulher. Em nome da liberdade de expressão muitas ficam expostas como mercadorias tornando-se simples objetos de satisfação para o outro. A ditadura da beleza estética, a busca de corpos perfeitos tem levado muitas adolescentes e mulheres a desenvolverem baixa autoestima e transtornos de ordem psicológica”, afirma Regina.
          Para ela, “a sociedade machista desenvolveu no homem o sentimento de posse com relação à mulher. Isto gerou a coisificação da mulher. Muitas sofreram e sofrem com o descaso de seus companheiros. A não aceitação de outros homens da rejeição, no caso do término do relacionamento, levam alguns a sentirem-se no direito de tirar a vida de suas ex-companheiras. Com a Lei Maria da Penha algumas mulheres quebram o silêncio e denunciam a violência doméstica na esperança de colocarem um fim no sofrimento, muitas vezes vivido de forma solitária. A violência cresceu muito nas últimas décadas e as mulheres fazem parte desta estatística”.
          Apesar de tudo, a psicóloga cita como pontos positivos na sociedade atual a “maior participação social (da mulher), acesso às mais variadas profissões, maior respeito de seus pares e do universo masculino e a busca por maior capacitação para inserção no mercado de trabalho”.

Texto: Marco Antonio Vieira de Moraes

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